segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Simbá, o Marinheiro

Na cidade de Bagdá, no reinando do grande Califa Harun Al Rachid, vivia um pobre homem, um carregador chamado Simbá. Morava distante do seu trabalho, na saída da cidade, numa pobre e miserável choupana com sua mulher e muitos filhos. Seu trabalho era árduo e pesado, principalmente naquele dia – com o sol quente a arrebentar-lhe os miolos.
Naquele dia específico ele carregava uma carga muito pesada de um lado de Bagdá a outro extremo. Seus braços ardiam, suas pernas vergavam sob o peso muito maior do que seu pobre corpo suporta. Andava, andava, e lhe parecia que o outro lado da cidade era mais distante ainda.
E foi num determinado lugar que ele começou a sentir um cheiro, hum... um perfume suave, adocicado mas não muito, uma aragem diferente, parecendo que o chão estava sendo banhado por águas celestiais. Foi andando e sentindo cada vez mais aquele perfume até que notou que o chão que pisava estava diferente, limpo, lavado e escovado por serviçais de uma determinada casa que ficava numa grande alameda bem próximo de si. Os serviçais jogavam água de rosa em abundância no chão. Além do suave perfume Simbá ouviu um som mágico vindo de dentro do casarão. Tudo isso e ainda ouviu canto de pássaros conhecidos.
Abaixou-se, colocou a caixa no chão, olhou ao redor e deu um grande e sentido suspiro. Estava diante de um casarão enorme, com um grande jardim, janelas amplas, com cortinas esvoaçantes brancas como as nuvens. Serviçais ricamente vestidos transitavam por todo o imenso jardim. Simbá achou que havia morrido e estava no paraíso. Aquela cena não podia existir na terra. Foi olhando, olhando e se aproximou de alguns criados e perguntou a um deles:
- Como se chama o dono de tão magnífico lugar?
- Como? Disseram ao mesmo tempo os criados. Não conhece nosso amo, morando na cidade de Bagdá? Não sabe que esta é a casa de Simbá, o marinheiro, famoso viajante dos sete mares iluminado pelo Sol?
Simbá o carregador já ouvira falar daquele marinheiro corajoso que andara por todas as terras conhecidas. E foi neste momento que ele sentiu um pouco de inveja de um homem que representava tudo o que ele mesmo não era. Era rico e ele pobre miserável. Vivia em uma grande casa enquanto ele morava em um canto escuro e úmido. E assim pensando disse em voz bem alta:
- Alá, Alá, porque me desamparaste? Sofro todos os dias da minha vida. Ganho pouco, trabalho todos os dias para sustentar minha família e ainda assim não lhes dou o que necessitam. Enquanto passo privações este rico senhor, Simbá, o marinheiro vive nababescamente? Quanta diferença! Alá, Alá... Quanta diferença Senhor! Que fiz eu para merecer vida tão dura! Ai, ai, ai!
E assim dizendo o pobre carregador bateu com força o pé no chão e levantou seus braços. E foi nesse exato momento que viu uma figura de homem, debruçar sobre a janela do andar superior da casa. Imediatamente um criado veio até ele, pegou-o pelo braço e foi dizendo que seu senhor queria lhe falar. Ele ainda argumentou que não poderia deixar o fardo abandonado na rua, no que foi tranquilizado pelos serviçais.
O convite deixou o pobre carregador muito espantado. Agora tinha que arcar com a responsabilidade do que acabara de falar. Achou que seria açoitado, o pobre. Entrou se desculpando em uma grande sala onde se encontravam muitas pessoas, acomodadas em torno de uma mesa com as iguarias mais apetitosas do mundo. Na cabeceira da mesa um homem de bela aparência comandava. Sua barba enorme, branca como algodão impressionava pela alvura e beleza. Havia serviçais por toda a parte e em grande quantidade. O homem da barba era nada mais nada menos que Simbá, o marinheiro.
Simbá o carregador nessa altura já estava assentado ao lado direito do dono da casa, sendo servido das mais finas iguarias. Ao terminar o jantar Simbá o marinheiro tomou a palavra e se dirigiu a Simbá o carregador, a quem tratou de irmão, segundo o costume dos árabes, perguntando seu nome e sua profissão.
- Sou Simbá, sou carregador de uma casa de comerciantes do outro lado da cidade de Bagdá. Senhor, me perdoe! O cansaço e a fome me fizeram falar tantas asneiras. Peço perdão.
Mas Simbá o marinheiro era um homem do mundo. Conhecia as coisas boas mas também já tinha passado por problemas, fome, medo e todo tipo de privações. Por isso sabia os motivos do pobre carregador.
- Meu amigo, - continuou Simbá o marinheiro, - quero neste momento que você conheça minha vida e veja que nada do que possuo hoje veio até mim com facilidade. Sofri muito para ter o que tenho hoje. Quando eu contar minhas aventuras muitos que desejam sair pelo mundo para conhecer e obter riquezas poderão desistir. Corri muitos perigos que ninguém pode imaginar.
Neste momento Simbá o marinheiro deu ordem a um serviçal para levar a carga de Simbá o carregador até o posto do outro lado da cidade, pois aquela conversa não ia acabar tão cedo. E Simbá o marinheiro começou a falar...
Herdei uma fortuna razoável de minha família. Mas era jovem e gastei praticamente tudo. Sabia que além de gastar a fortuna estava usando o meu tempo, depois me lembrei do meu velho pai que dizia “melhor estar morto do que ser pobre”.
E assim pensando vendi o que ainda possuía, ouvi os bons conselhos, consultei os grandes mercadores. Coloquei meu rico dinheirinho para render juros e fui viajar para a cidade de Bassorá de onde saí mar adentro com vários mercadores.
Seguimos a rota da Índia Oriental, no golfo Pérsico, entre a Arábia e a Pérsia. Durante a viagem passamos por várias ilhas, onde vendemos ou trocamos nossas mercadorias. Um dia de calmaria, próximo a uma pequena ilha, o capitão do barco autorizou a quem quisesse desembarcar. Eu fui um deles. Levamos comida e bebida, descansamos do movimento do mar e ascendemos uma fogueira. Foi aí que a ilha estremeceu, como se começasse um estranho terremoto.
Os que ficaram no navio viram toda a movimentação da ilha e o susto que todos nós passamos. Gritaram para que voltássemos, senão morreríamos. A ilha não era ilha e sim uma enorme baleia. Uns pegaram o pequeno barco, outros pularam na água e nadaram desesperados. Eu ainda estava sobre a ilha, isto é, sobre a baleia, que mergulhou rapidamente. Apenas tive tempo de me agarrar em um pedaço de madeira. O navio esperou por um tempo, mas o capitão, aproveitando o vento, não esperou mais. De longe vi meu navio zarpar.
Fiquei à mercê das ondas, jogado de um lado para o outro. Durante dois dias lutei com as águas. Vi que a morte chegava devagarinho. Mas uma onda gigante me pegou no alto, virou, virou e me jogou em uma ilha próxima de costa alta e escarpada, o que foi a minha salvação. Fiquei um dia prostrado, com sede e fome. Então me arrastei como pude a procura de alimento. Encontrei árvores frutíferas e água.
Fui voltando ao normal e resolvi entrar ilha adentro. Logo cheguei a uma planície onde avistei um cavalo. Ao me aproximar eu vi que era uma égua, presa a uma estaca e logo em seguida surgiu um homem que perguntou quem eu era e de onde havia vindo. Contei-lhe minha história. Ele me chamou e o segui até uma gruta onde estavam outras pessoas, que também se assustaram com a minha presença. Eles me deram comida e bebida e fiquei mais forte.
Perguntei a eles o que faziam nessa ilha distante e isolada. Disseram que eram cavalariços do Rei Mihrage, soberano daquela ilha. Estavam ali todos os anos, na mesma época. Traziam uma égua do rei para ser “coberta” por um cavalo-marinho saído do mar. Mas o cavalo marinho, depois que cobria a égua, queria devorá-la o que era impedido pelos serviçais do rei. Estes obrigavam o cavalo-marinho a voltar para o mar e a égua era levada de volta às estrebarias reais. Os potros nascidos, também chamados de cavalos-marinhos, eram muito valiosos. Os serviçais me informaram que voltariam para o palácio no dia seguinte e que se eu tivesse chegado dias mais tarde, teria morrido naquela parte da ilha pois era impossível chegar a algum lugar habitado sem conhecer as imediações. E assim aconteceu. O cavalo-marinho saiu do mar, cobriu a égua e depois quis devorá-la. A gritaria de todos fez com que ele voltasse para o mar e a égua fosse salva. Eu os acompanhei até a capital da ilha.
Conheci o rei Mihrage que me acolheu com bondade. Contei-lhe minha história. Ele se espantou muito com as minhas aventuras e me recebeu na sua corte como um amigo, me dando muitos presentes assim como a sua confiança. Nomeou-me responsável pelo porto, encarregado de registrar a entrada de todos os navios. Cada dia eu conferia os carregamentos de mercadorias no cais.
E não é que o navio no qual eu havia saído de Bassorá atracou no porto do reino de Mihrage? No seu carregamento achei fardos com meu nome. O capitão me disse que pertenciam a um comerciante de Bagdá conhecido como Simbá, morto no triste acidente na ilha da baleia, quando todos eles desceram pensando pisar em terra firme. Quando ouvi isso quase morri de emoção, me apresentei ao comandante, que a custo me reconheceu, pois havia se passado muito tempo desde o acidente.
O Rei Mihrage autorizou minha saída de seu país naquele mesmo navio. Deu-me muitos presentes e ficou feliz porque eu voltaria a minha querida Bagdá com dinheiro e esta história que conto a todos vocês. Com a venda das minhas mercadorias comprei aloe, sândalo, cânfora e cravo. Embarcamos e zarpamos, passando de ilha em ilha até chegar a Bassorá, de onde seguimos para Bagdá. Com o lucro dos meus negócios fui para a minha casa, juntando meus familiares. Comprei criados e criadas e refiz todo o meu patrimônio. Lancei-me assiduamente à busca e ao desfrute de prazeres, esquecendo das dificuldades pelas quais havia passado...
E foi então que Simbá o marinheiro deu ordens a seu empregados que servissem as comidas e bebidas mais finas aos seus convidados. Ordenou que as escravas tocassem instrumentos musicais e todos se comoveram com as melodias que ouviam. Ao carregador Simbá deu cem dinares e intimou que voltasse no dia seguinte para ouvir a história de sua segunda viagem.

Autor: Conto das 1001 Noites


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